CHAVES PROFUNDO!
Um madruga em cada esquina - Por Rafael Pereira de Menezes (14/02/2002)
Há cerca de 20 anos atrás, em um país distante chamado México, existia uma pequena vila suburbana, habitada por tipos igualmente suburbanos. Eram pessoas comuns: Viúvas, desempregados, crianças, professores... Também há cerca de 20 anos, um pouco menos do que isso talvez, uma recém fundada emissora de TV brasileira adquire um despretensioso seriado produzido no México, retratando justamente a vida das pessoas descritas no parágrafo acima. Para quem não percebeu, estou falando do Chaves, ele mesmo, o garoto que vive dentro de um barril.
Nasci em 1982, portanto minha infância foi muito marcada por esta série. Me lembro que ela era transmitida em horário nobre, às 20h. Minha mãe sempre me obrigava a ir dormir após o Chaves. Era um momento bastante esperado pra mim, que ficava torcendo pro episódio não terminar, assim eu poderia ficar acordado até mais tarde.
O tempo passou, aquele canal de TV cresceu e hoje é um dos maiores do país, investe milhões em artistas, em filmes e em programas. Porém aquela série permanece no ar, diariamente. Bom, tem gente que detesta, tem gente que adora, mas é impossível negar. Todos nós já passamos algumas horas em nossas vidas assistindo o programa dos personagens criados por Roberto Bolaños. O que intriga a muitos é como o programa consegue se manter no ar por todos estes anos? Como uma série que possui tão poucos recursos técnicos consegue cativar crianças e adultos em plena era do computador, dos desenhos feitos em animação gráfica?
NÃO POR ACASO
Sempre me questionei a respeito disso sem nunca ter conseguido chegar a uma resposta. Até que um dia, por acaso, zapeando os canais de TV à tarde, acabei vendo uma entrevista de Bolanõs. Uma frase dele que me chamou muito a atenção foi a seguinte: "o Chaves faz sucesso em qualquer lugar do mundo onde existe fome". Realmente, sua série é bem sucedida em toda a América Latina, do México à Argentina. Pude comprovar pessoalmente isto quando estive no Chile, em 1999. Todos os latinos conheciam os personagens e os capítulos, assim como no Brasil. Já os europeus e norte-americanos nunca tinham sequer ouvido falar. Comecei a ver algum sentido na afirmação de Bolaños.
Aquela vila despretensiosa é um microcosmo que contém a sociedade latino americana. É uma grande caricatura de nós mesmos. Pode parecer estranho este comentário. Mas uma observação mais atenta sobre os personagens demonstra isso claramente.
Um homem que vive endividado, que tenta várias profissões diferentes durante um curto espaço de tempo, sem nunca atingir êxito em qualquer delas, mas que mesmo assim nunca para de procurar outra atividade para manter a si próprio e a sua filha única. Passa a maior parte de sua vida desempregado ou sub-empregado, o que transmite a um observador menos atento uma imagem de preguiçoso, de vagabundo. É assim taxado por todos aqueles que ocupem uma classe social mais alta do que a dele, como por exemplo, seu senhorio. Quantos 'madrugas' não estão por aí, nas bancas de camelô dos centros das grandes cidades brasileiras? Vivendo de aluguel e sendo despejados de casas pequenas na periferia? Estariam eles também nas invasões de terrenos públicos? Nas favelas, talvez?
Sua vizinha é uma viúva que vive de pensão, símbolo de uma classe média cada vez mais oprimida e decadente, mas que mesmo assim luta com todas as forças para manter o que resta de sua posição social (apesar de viver em um cortiço). Tenta de todas as formas manter um padrão de vida que já não condiz com sua realidade. É obrigada a viver em um bairro afastado, cercada de pessoas de nível cultural inferior, o que a incomoda, e ao mesmo tempo a eleva. Neste local ela pode ser superior. Pode olhar todos os seus vizinhos de cima. Não por acaso, ela se aproxima da única pessoa na história que possui um nível de cultura um pouco mais elevado, ou seja, o professor de seu filho, um garoto robusto e mimado, que por isso é sempre passado pra trás pelas outras crianças, mais pobres e, talvez por isso, mais espertas, uma vez que não tiveram tanto mimo, tanto zelo por parte de seus pais.
Na casa ao lado vive uma senhora de idade não tão avançada, mas que é claramente discriminada por todos os habitantes do local por isso. Vive sozinha, dependendo de sua aposentadoria pra viver. O dinheiro, embora escasso, é suficiente, uma vez que ela vive sozinha. Uma pessoa em seus 60 anos sendo considerada idosa, não seria reflexo de uma baixa expectativa de vida? Qual será a média de vida da imensa maioria de madrugas de nosso país? E por que ela é sozinha? Será que alguém olha pra ela? As visitas do carteiro nunca trazem nada para tal senhora. Ela cita alguns parentes distantes, que porém, jamais aparecem. Eles não se importam. O idoso é visto como um peso, alguém que dá trabalho e não trás retorno, logo é isolado em sua pequena casa, ou em um asilo, ou em seu quarto. Apenas ela e suas lembranças entram naquela casa.
SI, EL CHAVO
Chego finalmente ao personagem central da história. Um garoto que diz ter família, mas que ninguém a conhece. Que diz ter um nome, mas que ninguém sabe qual é. Ele vive no mesmo ambiente destas pessoas, brinca no pátio e vai a escola, porém sempre sozinho. Não tem o que vestir, enquanto as crianças próximas a ele estão sempre bem vestidas. Todos demonstram pena pela criatura, e engolem seco cada vez em que ele manifesta sua fome, suas necessidades, sua carência afetiva. Porém nada de concreto é feito para mudar sua condição, talvez um sanduíche de presunto hoje, um sapado usado e velho amanhã. Isso basta para manter as consciências suburbanas tranqüilas e satisfeitas, com uma caridade vazia que mantém uma criança vivendo dentro de um barril.
Este barril poderia ser uma marquise? Um viaduto? Quantas crianças vivem nas ruas de nosso próprio bairro e nada fazemos para ajudar? Damos um trocado aqui, um sanduíche aqui. As vezes até juntamos tudo o que não queremos, colocamos em um saco de supermercado e descemos de nossos apartamentos para fazer a caridade. Restos, apenas restos. De comida, de roupa, de afeição. O garoto continua lá, faminto e sozinho. Irá crescer e ser repreendido caso vier a contrariar as regras da sociedade em que cresceu a margem. Ou pior, no caso de suspeita, será o culpado. Não pretendia citar episódios da série nesta parte do texto, mas não posso deixar de citar o episódio do ladrão que aparece na vila. Todos, sem exceção, o acusam de ladrão. Sempre afirmaram que tinham pena e até chegavam a gostar do pobre coitado, porém na primeira oportunidade ele foi julgado e condenado. Era inocente e todos pediram desculpas. Mas tais desculpas aparecem na vida real? Acho que não.
Realmente, meus colegas europeus jamais entenderiam este contexto, logo jamais ririam disto. Que sorte a deles. A auto-ironia sempre tem um efeito devastador sobre todos. Não existe nada mais fácil do que rir de si mesmo refletido no outro. Não existe nada mais fácil do que julgar e condenar alguém que se encontra um pouco abaixo de você.
Então desempregado e vagabundo se confundem, a velha é velha, o rico é rico (mais um detalhe, os ricos da série são gordos, teria isso algo a ver com abundância? Será por isso que todos os outros são magros?), ele não se mistura, apenas aparece para cobrar aluguéis (contas, mensalidades, prestações) e a criança abandonada permanece abandonada. Aliás, todos permanecem abandonados à própria sorte em seus pequenos problemas, aparentemente sem solução, tentando se adaptar inutilmente à esta dura realidade.
Claro, isso são coisas que só se percebem com o tempo. Uma criança não entende tais coisas ao assistir "Chaves". Os adultos riem um riso solto, "esses problemas não são apenas meus" pensam, mesmo que inconscientemente. E acham tudo aquilo engraçado. Aquilo tudo lhes diz respeito e faz muito sentido. Aquele é o seu próprio mundo e a sua própria comédia. Infelizmente.
Bruno Pessa sempre concede a palavra quando alguém fala bonito e nos faz pensar sobre temas de relevância cômico-social
5.5.08
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6 comentários:
baca seu blog.
principalmente o pst do chaves.
rs
abraços.
Realmente, rimos do nosso próprio cotidiano que não é lá tão engraçado em diversos momentos, mas é o que é, nu e cru. Como no episódio que te contei esses dias, acredito q ñ só eu mas todo mundo q já o assistiu tenha ficado com um nó na garganta. O Sr. Girafales pega um desenho em branco do Chaves, pergunta o q significa, e ele diz ser seu café-da-manhã. Por alguns segundos ele engole o mesmo nó na garganta q nós engoliremos no fim da cena, mas logo em seguida ele engole gulosamente junto com o Kiko, todos os biscoitos q a D. Florinda trouxe, sem deixar nada sobrar ao Chaves, que sai de fininho com aquela trilha sonora triste que aparece de vez em quando. Como nós, logo após termos engolido o mesmo nó na garganta que o Sr. Girafales engoliu, engoliremos a nossa próxima refeição, sem lembrar desse episódio e dos vários Chaves q existem por aí, e sem notar qual deles q está tão perto, q sai de fininho... E assim continuamos, no geral, nessa mistura de gula e nó na garganta, sem saber identificar os biscoitos que podemos oferecer aos Chaves por aí, mesmo sabendo que não será a solução total... Beijú!
Aí Xará, td blz? Gostaria de saber de onde surgiu esse texto.
Grato,
Bruno Giorgi
Esse texto foi enviado por uma amiga, que o encontrou na internet, procure pelo nome do autor e algumas palavras-chave referentes ao Chaves!
abraço
Depois de anos de vício em Chaves passei por uma longa e tenebrosa fase de negação. Finalmente aceitei. Mas não o suficiente para escrever sobre isso num blog... rs.
Abraço!
ah... o texto é meu!
escrevi isso em 2002 depois de um insight no metrô! legal ve-lo publicado por aqui depois de todo esse tempo. escrevi mais algumas coisas no meu blog www.aerolitos.cjb.net. dêem uma passada por lá!
falows!
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