24.9.07
Celso Lungaretti
No início dos anos 80, quando trabalhava em revistas de música, tive uma breve amizade com o Raul Seixas. O que nos aproximou foi termos ambos 1968 como referencial maior de nossas existências. Músicas tipo "Metamorfose Ambulante", "Cachorro Urubu" e "Sociedade Alternativa" lavavam minha alma, num momento em que a velha esquerda autoritária e rabugenta se reconstruía, passando como um rolo compressor sobre os sonhos da "geração das flores".
De papos sóbrios e etílicos que tive então com o Raulzito, posso dizer que o lance da sociedade alternativa era, basicamente, o de agruparmos as pessoas com boa cabeça em comunidades que estivessem, ao mesmo tempo, dentro do sistema (fisicamente) e fora dele (espiritualmente).
Essas comunidades existiram no Brasil, de 1968 até meados da década seguinte. Nelas praticávamos um estilo solidário de vida, buscando reconciliar trabalho e prazer. Procurávamos ter e compartilhar o necessário, evitando a ganância e o luxo.
Acreditávamos que um homem novo só afloraria com uma prática de vida nova; quem quisesse mudar o mundo dentro das estruturas podres, acabaria sendo, isto sim, mudado pelo mundo. Uma verdade que acaba de ser, mais uma vez, demonstrada, com a adoção pelo PT da política econômica neoliberal e das práticas delinqüentes antes criticadas nos inimigos.
Então, em vez de conquistar o governo para tomar o poder e construir uma sociedade mais justa, como tenta em vão fazer a velha esquerda, nós acreditávamos em ir praticando uma vida não-competitiva em comunidades que se entrelaçariam e cresceriam aos poucos, até "engolirem" a sociedade antiga.
Mantenho basicamente esse ideal – tanto que, em meu próximo livro, pretendo exatamente resgatar teses e posturas da chamada Nova Esquerda dos anos 60, provando que, mais do que nunca, apontam o caminho para sairmos deste inferno que o capitalismo globalizado engendrou.
O NÉO-ANARQUISMO – Se, como todo mundo diz, a Sociedade Alternativa proposta pelo Raulzito tinha muito a ver com os livros do bruxo Aleister Crowley (que ele e o Paulo Coelho andaram traduzindo do original), também se inspirava nas barricadas parisienses, nas comunidades hippies e na contracultura, o que poucos apontam.
Ele e eu conversamos muito sobre isso; éramos ambos saudosos dos tempos em que tentávamos nos tornar homens novos na convivência solidária com os irmãos de fé, em nossos "territórios livres".
A referência ao maio/1968 francês é óbvia, por exemplo, na segunda estrofe de "Cachorro Urubu": "E todo jornal que eu leio/ me diz que a gente já era,/ que já não é mais primavera./ Oh, baby, a gente ainda nem começou."
Os conservadores (incluindo a velha esquerda stalinista) sempre tentaram reduzir a obra do Raulzito a uma provocação artística, sem maiores conseqüências políticas e sociais. Mas, ele não era meramente um gênio de comportamento anárquico, como tentam retratá-lo, folclorizando-o para torná-lo inofensivo.
Era, isto sim, um homem sintonizado com o néo-anarquismo que esteve em evidência na Europa e EUA na virada dos anos 60 para os 70. E só não dizia isso de forma mais explícita em suas canções porque o Brasil era um estado policial, submetido a uma censura rígida, embora burra.
Este não era, claro, o único aspecto de sua multifacetada personalidade – talvez nem o principal. Mas é o que mais tem sido omitido pelos que querem fazer dele apenas um monumento do passado, não um guia para a ação no hoje e agora.
LIKE A ROLLING STONE - Eu vivi na estrada e em comunidade, em 1971/72. Foi uma experiência riquíssima.
O que atrapalhava muito era a tensão entre a liberdade que queríamos construir em recinto fechado e o terror e o medo que grassavam "lá fora". Vivíamos acuados, os cidadãos comuns nos olhavam com medo ou rancor por causa de nossas cabeleiras e roupas extravagantes. Enquanto isso, a economia deslanchava e alguns sentiam-se tentados a ir buscar também o seu quinhão do "milagre brasileiro".
Hoje, quem tem olhos para ver já pode aquilatar o que é a sociedade de consumo e a posição de país periférico na economia globalizada: parafraseando Conrad, "o horror, o horror!".
Acostumado aos tempos em que se trabalhava para viver, eu não consigo aceitar que atualmente as pessoas vivam para trabalhar, mobilizadas por objetivos profissionais umas 14 horas por dia (expediente, horas extras que dificilmente são pagas, cursos e mais cursos de atualização profissional, etc.).
E tudo isso para quê? Para poderem comprar um monte de objetos supérfluos e quase nunca encontrarem relacionamentos gratificantes no dia-a-dia, pois as pessoas já não sabem mais interagir – querem apenas usar umas às outras.
Então, fico pensando que, em lugar de levarmos vida de cão dentro do sistema, poderíamos todos estar nos agrupando em casarões da cidade e sítios no campo, criando pequenos negócios para subsistência, plantando, levando uma vida simples mas solidária. Reaprendendo a ter no outro um irmão e não um competidor.
Essas comunidades urbanas e rurais se entrelaçariam, ajudando umas às outras, trocando o que produzissem, prescindindo dos bancos, escapando dos impostos e das formas de controle do Estado. Em suma, praticando criativamente, adaptados aos dias de hoje, os ensinamentos de Thoureau em "A Desobediência Civil".
Seria um ponto de partida. E, conforme os "territórios livres" fossem crescendo, poderiam até virar algo mais sério – uma alternativa para toda a sociedade.
Enfim, o importante mesmo é começar a caminhada, dando um passo depois do outro.
COMO FAZER – Nas comunidades de 1968/72, o que se fazia era reviver a velha democracia grega: reuniões para se decidir os assuntos mais importantes, para nos conhecermos melhor, para sonharmos e brincarmos.
Podia começar num debate acirrado e terminar com todo mundo nu dançando ao som de "Let the sun shine in" (com inocência, pois não éramos dados ao sexo grupal).
Enfim, tentávamos existir plenamente como grupo, esforçando-nos para superar o egoísmo e a possessividade.
Havia problemas, claro. Emprestávamos ao outro o que ele estava precisando mais, numa boa; só que, às vezes, descobríamos na enésima hora que alguém tinha levado sem pedir aquilo que a gente ia usar. Dava discussão e os limites tinham de ser depois definidos na reunião coletiva da nossa "comuna".
Também não era fácil administrar o jogo das paixões. Minha amizade com um ótimo companheiro andou estremecida por uns tempos quando a namorada rompeu com ele e iniciou uma relação comigo. Por mais que quiséssemos nos colocar acima de sentimentos menores como o ciúme, eles existiam e nos machucavam.
O importante, entretanto, era essa vontade que todos tínhamos de superar as limitações de nossa educação pequeno-burguesa e viver de forma generosa e solidária. Quando alguém tinha um problema, era de todos. Quando alguém estava triste, logo um companheiro ia perguntar o motivo. Tudo que podíamos fazer pelo outro, fazíamos.
Onde erramos? Duas vaciladas fatais implodiram nossa comuna. Uma foi deixarmos a droga correr solta – LSD e maconha, principalmente, pois o propósito era abrirmos as portas da percepção, no dizer de Huxley. Isto, entretanto, trouxe à tona facetas da personalidade reprimida que o grupo não conseguia administrar. Acabaram ocorrendo conflitos, separações.
A outra foi recebermos de braços abertos todos os "pirados" que apareciam, vendo um amigo em cada pessoa que parecesse estar “fora do sistema”. Como sempre, apareceram os aproveitadores, os parasitas, os pequenos marginais. E a polícia veio atrás.
Mas, as experiências que vivenciamos foram tão intensas que aquele ano de 1972 valeu por uns cinco. Foi com imenso pesar que vimos aqueles laços se romperem, sendo obrigados a voltar, cada um por si, à luta inglória pela sobrevivência. É uma tortura ser obrigado a correr de novo atrás do ouro de tolo, quando não se tem mais aquela velha opinião formada sobre tudo...
Com algumas correções de rumo e numa conjuntura menos repressiva, as comunidades ainda poderão ser viabilizadas. Há que se tentar outra vez. Mesmo porque, como disse o Raul, "basta ser sincero e desejar profundo/ você será capaz de sacudir o mundo".
14.9.07
12.9.07
MAIS UM TRABALHADOR
Que maravilha não ser violentado pelo despertador! Abro os olhos como os fechei: pensando nela e feliz por ser um dia a menos que nos separa. Acordei disposto para aproveitar o tempo que restava antes do trabalho com as coisas a fazer anotadas no porta-recados da escrivaninha. Não escrevo esses lembretes só por lazer ou obrigação; creio que a memória deve ser visualmente estimulada. E se a manhã for de sol, fico mais disposto ainda.
O café da manhã não tem café, mas é na cama, de frente pra TV. Depois vem o banho, pois se eu tomar de madrugada, quando chego do trabalho, o risco de se resfriar é grande. Antes de sair, fecho o saquinho de lixo cheio e o coloco no latão do corredor, senão ele passa dias e dias em casa. Saio, vou combinar a faxina do apê com a mulher do zelador. Somos quatro no mesmo teto, mas tacitamente eu assumo sempre a tarefa. Não ligo, pelo contrário, pois uma limpeza freqüente é sempre conveniente, pelo menos na minha ótica, já que o tema não é consensual entre nós.
Tão básico como tirar dinheiro é passar no correio ou depositar uma carta social numa das tantas caixas de coleta nas calçadas. A carta social é de pessoa pra pessoa e custa 1 centavo há muitos anos, acredite. Fazer compras sozinho e a pé é um dos mais completos exercícios físicos: você anda na ida, roda lá dentro do supermercado e anda novamente na volta, carregando sacolas que testam a resistência dos braços e mãos.
Não gosto de me demorar muito entre as gôndolas, nem permito que a tentação consumista se manifeste. Na hora de pagar, em lembro saudoso da época de universitário, quando uma compra semanal de cerca de dez itens não ultrapassava 20 reais. Aliás, quem vê meu carrinho deve achar que não sou nada mais do que um estudante de república, um pouco mais saudável e menos alcoólico do que os convencionais.
Deixo as compras na cozinha e esquento o que sobrou do marmitex de ontem. Enquanto como, ligo a TV no jornal ou no esporte e o computador também, pra ver e-mails e notícias. Na volta à cozinha, preparo o lanche que vou levar, além da maçã, da banana, da barra de cereais e da Club Social (isso é que é invenção boa, bolachinha salgada na medida pra você transportar na bolsa!).
Umas dez pras três tô indo pegar o trem, pra poder chegar ao trampo por volta das quatro. Primeiro é o trem “caribenho”: abarrotado, gente humilde, crianças, sacolas, calor e lentidão – tanto pra passar na estação como pra se mover entre uma e outra. E sempre pintam os vendedores de badulaques e os pedintes, geralmente cegos ou desempregados. Quem os persegue são os agentes de segurança, os “urubus”, mas eles entram mais no trem “espanhol”, que por sua vez tem menos “infratores”. Esse outro vai menos cheio, com pessoas de melhores roupas e ar condicionado. Só porque percorre a marginal, onde estão grandes edifícios empresariais. Um absurdo!
Mais contraditório ainda, depois de ver favelas e outras submoradias sub-humanas, é a região onde desço do trem e fica meu trabalho: majoritariamente carros importados, lojas e restaurantes caríssimos e pessoas que vieram ao mundo para dar ordens e passear. Claro que o jornalista dentro de mim fica puto! Mas pô, quem num queria um vidão feito de viagens, curtições e desobrigações? Trabalho enobrece uma ova!, penso eu já perto de chegar ao meu. Ainda bem que eu vivo no mundo dos esportes, donde não saio nem quando tô de folga. Mesmo assim não parei de estudar, um pouco porque é legal mas principalmente porque o dia de amanhã, vai saber né...?
Falando em amanhã, só nos primeiros minutos do dia seguinte eu tô livre do trampo, ou seja, depois da meia-noite. Cansado, claro, mas satisfeito: amanhã dá pra dormir de novo! E amanhã vou voltar a correr, pra pegar ritmo pro dia 31 do 12, que preciso passar correndo! A firma me paga o táxi pra retornar pro apê, dado o adiantado da hora. De dentro dele, vejo o povo nos restaurantes chiquérrimos, dando risada porque não sabem o que é ficar em pé num trem lotado. Fico pensando: “Poxa, eles têm dinheiro, mas a minha vida é muito mais rica, eu sei o que é dar duro!”. Mas que deve ser bom vir ao mundo a passeio, ah, deve!