O primeiro dessa série "Uma vez escrevi" completou 10 anos ontem, no Dia do Escritor, e não apenas pela efeméride consagrada do número redondo, mas pela manutenção do meu pensamento sobre a questão, achei válido praticar a emersão abaixo. Vejam o que o então estudante de Jornalismo escreveu em uma mensagem de e-mail (a não lembro quem...) na época:
Por que parar na leitura?
(2003)
25 de julho,
dia do escritor. Logo cedo, alguém na TV cita a data e aconselha milhões
de brasileiros insistentemente: "leiam, não percam esse gosto e esse
costume, não deixem os livros encostados na estante!". Ótimo, a
leitura é o nosso pão da vida e criar bibliotecas em casa somente para a visita
da poeira não tem muita utilidade mesmo.
Muito propício o incentivo à
leitura voltado ao reconhecimento do escritor. Ampliando o
raciocínio, porém, pintou um cutucão: todos nós devemos ler assiduamente,
pois temos grandes nomes cujas obras se constituem em legados riquíssimos a
nossa formação, correto? Então, essa classe dotada de um privilégio
intelectual restrito a poucos merece mais respeito: são Escritores, melhor
dizendo. Nada contra, já que devemos muito a eles. A pergunta está
do lado de cá. A nós, meros mortais, caberia apenas consumir o
legado que vem "de cima"? O que fazer com o legado diário que
acumulamos em preciosos minutos de leitura? Se há
"Escritores", assim tratados por viverem das palavras, não podem
existir "escritores", pessoas comuns colhendo os frutos de sua
condição de leitores?
A transposição
do ler ao escrever, penso, está mais para o atravessar uma rua de mão
única do que o ir de Santos a Guarujá numa manhã de fim de semana de
verão. Depende mais de quem empunha uma caneta ou se debruça num teclado; os
conhecimentos são mais básicos do que muito se pensa. Lamento que se
ache que é preciso diploma superior ou se considere atividade exclusiva às
ciências humanas e aos comunicadores. Muitos dos "Escritores" nem
ensino médio tiveram. Alguém pode pensar: ah, mas eles são (ou foram)
"Eles", né... Superando mais um exemplo dessa
teimosia nacional que é a auto-subjugação, veremos que a simples
alfabetização, tão em voga no país que cada vez mais leva
crianças às escolas, pode ser nosso ponto de partida. A partir
do cotidiano, podemos ir além do que habitualmente se faz na escola e
compõe o contato interpessoal via correio ou internet, por exemplo. Resta agora
descobrirmos o que ganhamos com isso.
Vamos dar uma chegadinha até a Europa da
Idade Média pré-capitalista, que já via projetos de cidades em muitas
feiras livres. Se você planta apenas verduras, como
obtém grãos, cereais e outros alimentos? Vai à feira e
troca seu excedente pelo do vizinho que planta aquilo de que você precisa;
assim ocorreu até que alguém tivesse a idéia (não tão feliz, creio)
de estabelecer um valor de troca para as coisas, que aí se desvinculou do valor
de uso, e hoje vivemos com o dinheiro e o capitalismo, mas meu ponto central
ficou lá trás. Voltemos ao tema tentando visualizar os benefícios da troca para
os nela envolvidos: percebemos que todos ganham ao produzir algo que vai
ser aproveitado pelos demais graças à existência da troca em si.
O ato de escrever - com letra minúscula
(porque me refiro a nós), além de nos propiciar um conhecimento partilhado
sem que tenhamos de comprar livros, não se restringe ao "toma lá = dá
cá", nem pára na bondade cristã de contribuir de alguma forma com o
enriquecimento do próximo. Quando escrevemos, aperfeiçoamos nossas
reflexões de tal modo que nos conhecemos melhor, aprendendo algo novo
a cada busca de palavras na seqüência do texto. O prazer e as
descobertas se assemelham ao que a leitura proporciona, afinal a escrita
assenta-se sobre a materialização de várias coisas que você já leu algum
dia, se entendermos tudo que vivenciamos como componentes de nossa leitura
do mundo.
O maior estímulo está dado: começar a
escrever espontaneamente tende a se converter numa viagem tão saborosa
quanto embarcar no universo da leitura. Atualmente, é muito fácil dar asas à
escrita: esse e-mail já mostra um pouco do que a internet pode nos
proporcionar. Entretanto, somente a disposição de cada um pode fazer nossa
cultura avançar nesse âmbito. É batido afirmar novamente que temos de ter
a iniciativa, mas, se servir de constatação, um estudante de jornalismo pode
vos assegurar: raramente ele ouviu de alguém desde o ginásio até a
faculdade que, não bastando a leitura, precisava escrever. Hoje, não se
arrepende por ter ido além.